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quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Fecharam o café

Outro dia voltei no mesmo self-service perto do trabalho onde eu almocei praticamente todos os dias nas últimas semanas da gestação.

Tudo estava como era antes, sete meses atrás. Os mesmos funcionários, o mesmo cardápio, o mesmo desconto para funcionários da firma... a diferença é que dessa vez eu pude colocar salada crua, coisa que você evita comer fora de casa durante os nove meses da gravidez.

É... tudo continua na mesma. Parece que sai daqui ontem!

Outra coisa que eu sempre fazia era tomar capuccino na livraria perto dali. Adoro o capuccino de lá. Mas, durante a gravidez a gente também evita café. 

Não sei se tem base científica, eu evitei. Até porque enjoei. 

Enfim, fazia MUITO tempo que não passava lá pra tomar um capuccino e a ideia de reviver esse momento corriqueiro me empolgou demais. Lá fui eu, sorridente e animada até à livraria.

Nada estava no lugar! A livraria estava completamente diferente. Fecharam o café!

Fecharam
o
café

A sensação era de que eu dormi por milênios, acordei, e não reconhecia mais nada.

A atendente que era minha amiga, a que sabia o jeitinho do meu capuccino, a que nem esperava eu pedir porque já sabia o que eu queria, estava grávida da última vez que a vi.

O filho dela já tem um ano e quatro meses - me contou sorrindo.

Por quanto tempo eu dormi?

((ou melhor: por quanto tempo perambulei pelo puerpério? - dormir está entre as atividades que eu menos fiz nos últimos meses))


Em questão de minutos eu fui de "a vida nem mudou tanto assim" para "nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia".

E tem sido assim.

Tem dias que a gente acorda e acha que tudo vai um dia se encaixar, ainda que você não consiga almoçar e esteja sem lavar o cabelo há uma semana.

Em outros a única solução parece ser chorar compulsivamente no caminho pro trabalho, depois de deixar o neném na creche - chorando também, gritos que você consegue ouvir do lado de fora, mas "o dever chama" e o relógio não espera.

E aí toca uma música no rádio. E você lembra que gosta de música. Que gosta daquela música. E a sensação é de ter encontrado uma velha conhecida que não via há anos!

"Oi, Carol, você por aqui? Que coisa boa saber que, vez em quando, você aparece!"


Ela está por aqui. Em algum lugar. Aquela Carol de antes às vezes aparece. Bem rapidinho, só pra lembrar que foi ela quem ajudou a fazer o caminho até aqui. Depois vai embora. Não é mais o momento dela.


Essa Carol de agora ainda está meio deslocada. Está tentando caber: no novo espaço, na nova rotina, nas roupas. Fazendo malabarismo para carregar sacola, carrinho, neném  e culpa. Se acostumando com a nova bagunça da bolsa, que tem caneta, crachá, bomba de leite e mamadeira.

É uma bagunça mesmo. Por dentro e por fora.

Não dá para trabalhar fora, cuidar do neném, juntar brinquedos, colocar roupinha de molho, cuidar do neném, fazer papinha fresca todo dia, recolher o lixo, arrumar a cama, cuidar do neném, limpar o chão, lavar a louça, lavar o banheiro, cuidar do neném.


Simplesmente não dá. Não cabe em 24 horas. Nem em 48.

Vai ficar coisa fora do lugar. Do lado de fora e do lado de dentro.

Tem que abrir mão de algumas coisas.


Do controle, principalmente.

Isso não existe


E de tudo mais que estiver pesando a carga.

Afinal, são apenas dois braços. Uma coluna estourada.

E um peito cheio.

Porque, se não é o amor... eu nem sei!


Em tempo:

você que convive com mulheres que estão nessa recém-maternidade (não importa se do primeiro, do segundo ou do décimo filho), seja paciente e delicado com as palavras. Você que não sumiu nem se escondeu e ainda que ser amigo/amiga dessa mulher, compreenda que nosso mundo está meio bagunçado, mas a gente ainda quer (e precisa) conversar. Você que faz parte da rede de apoio, ajude a cuidar do neném, mas lembre que a mãe também precisa de cuidado, de tempo pra autocuidado.

Pela atenção obrigada.






sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Mães invisíveis

Se tornar mãe é, arrisco dizer, a experiência mais transformadora que podemos viver. Um privilégio da mulher. Que traz com ele também uma carga.

A vida muda desde o instante em que você vê os dois risquinhos no teste de farmácia. 

Tá. "No instante" não. Leva um tempo pra sair do transe e a ficha cair

Mas, depois que cai... já era.

São nove meses de exame atrás de exame, restrições alimentares, preocupações: está bem? tem cinco dedos em cada mão? o coração está perfeito? está crescendo direitinho?

Na primeira morfológica (para quem ainda não passou por isso = ecografia que verifica a formação de todos os órgãos do bebê) a gente sua frio, um misto de medo e ansiedade pra saber logo se está tudo bem.

Tudo no lugar. Tudo formadinho

Um alívio. Um amém (pra quem é de amém).

Mas, e quando essa resposta não vem?

Os meus relatos aqui fazem sentido pra quem compartilha da minha bolha. Essa noção eu tenho. E isso começou a me incomodar há algum tempo.

A gente sabe do cansaço, da privação de sono, dos mamilos doloridos, da falta de tempo pra si mesma. A gente sabe e reclama de tudo isso. 

E tudo bem reclamar. É cansativo mesmo é ótimo que estejamos falando sobre isso. Desromantizar (a palavra da moda) é preciso

Mas, eu fico pensando que a gente passa por tudo isso tendo uma rede de apoio, tendo acesso à informação, tendo uma condição financeira ok e, o mais importando de tudo: tendo filhos saudáveis.

Quando falta qualquer um desses elementos a carga é MUITO maior. Quando a complicação é na saúde... não sei nem dizer.

Das sincronicidades que a vida tem, uma apuração no trabalho me afundou nessa reflexão. 

Como é a realidade das mães de bebês com deficiência?

As mães dos bebês com microcefalia, como ficaram conhecidas. O zika vírus que mudou a realidade de tanta gente. A microcefalia é a síndrome mais comum, mas vem associada a inúmeras outras complicações: epilepsia, problemas de visão, de audição, de fala, de deglutição... 

O surto de 2015-2016 pegou todas essas mães de surpresa. Elas não ouviram que estava tudo bem depois da morfológica. 

Não estava. Ainda não está. Nem vai ficar.

Se a vida da mãe de um recém-nascido para, o que acontece com a vida da mãe de um recém-nascido com má-formação?

Se a gente se torna invisível pros amigos, como se sente a mãe de um bebê com deficiência?

Se a gente reclama das noites em claro, do bebê com cólica e do bebê com a gengiva coçando, o que faz a mãe de um bebê que convulsiona e por isso precisa ser monitorado 24 horas por dia?

Quem abraça essas mães? Quem olha pra elas?

Largam o emprego - o bebê exige dedicação exclusiva. 
São largadas pelos companheiros - a maiora dos pais não segura a onda.
São abandonadas pela sociedade. Essa sociedade que "diz gostar de criança".


Não gosta. Acha fofo, mas não gosta 

Não se preocupa. Não se une pra proteger. Não inclui. Não cuida.

Tem muito discurso. Pura bravata.

Na prática, o que se vê são hotéis e restaurantes que impedem entrada de crianças, gente torcendo o nariz quando percebe que tem um bebê no voo, reclamando do barulho das crianças "gritando" na quadra de esporte do bairro, desviando quando vê uma mãe cheia de sacola, empurrando o carrinho com um braço e segurando o neném - que se recusa a ficar dentro dele - com o outro. 

Na prática, tem um quilo de mãe se desculpando por aí quando o neném chora. 

A sociedade finge que se preocupa com a criança. Na prática, "é responsabilidade dos pais". Pontofinal.

Corrigindo: "É responsabilidade da mãe". Pontofinal.

Isso quando são crianças saudáveis. No caso das crianças com deficiência a sociedade simplesmente ignora. Finge que não existe.

Não tem inclusão nas escolas. Não tem acessibilidade no transporte público, nas praças, nos parques... Não tem acolhimento pras mães.

Os bebês sofrem? Arrisco dizer que não. Eles não conheceram outra realidade. Não nessa encarnação (pra quem é de encarnação).  

Mas, e as mães?

Essas mulheres que sairam um dia pra fazer um exame de rotina do pré-natal e nunca mais foram as mesmas?

Essas mães que serão mães de eternos bebês? Que choram a perda prematura dos filhos?

E a saúde mental dessas mães?

Percebem como a gente vive numa bolha?


Até eu descobrir uma forma de fazer mais, fica aqui meu abraço de amor a todas as mães. 

TODAS.













quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Três dias, mil pedaços

É bom 

A gente volta se sentir agente, volta a fazer algo pra si própria. Vestir uma roupa que não seja moletom e camiseta. Sair sem carrinho. Sem uma sacola gigante. Ligar o rádio e ouvir música alta dentro do carro. Falar com adultos sobre assuntos triviais - sobre política, sobre o clima.

É estranho

Sempre parece que "tá faltando alguma coisa". Primeiro porque a última lembrança da rotina de trabalho contém uma barriga gigante de 37 semanas. ((agora temos uma barriguinha proeminente e alguns centímetros a mais no quadril, mas sobre isso eu falo outra hora)). Depois, sete meses com um pacotinho pendurado - ou no colo, ou no peito. 
Andar por aí só com uma bolsa dá a sensação de que alguma coisa ficou pra trás.

É ruim

Será que dormiu? Será que comeu? Será que trocaram a fralda? E a musiquinha que acalma, quem vai cantar? Não quero saber de política, quero aquele cheirinho bom de pescocinho suado!  

Voltar ao trabalho é tudo isso.
É bom. É estranho. É ruim.

Dá saudade dele. Daquela mesma que a gente sente de si mesma quando está mergulhada no puerpério e pensa: "não vejo a hora de voltar pro trabalho".

Dá culpa. O neném está dormindo lindinho e você tem que ir porque o relógio não pára e você não pode ser atrasar (mais). Aí você lembra que não vai estar lá quando ele acordar. Quem estará vai dar colinho? Ele vai ser bem tratado?

É muita coisa, muito sentimento, tudo ao mesmo tempo.

E foi só o terceiro dia.

Já teve sensação de liberdade. Já teve choro desconsolado no trânsito depois de se despedir. Já teve alívio por saber que ele sobrevive. E bem.

Tem pressão de todos os lados. E todos têm uma solução. 

"Fica em casa"
"Põe na creche"
"Vai atrás de outra babá"


Todas as soluções são boas. Depende do que você sente. Não existe fórmula mágica e não existe maneira errada. Separações doem mesmo. Leva um tempo até se adaptar.

Mas, tudo entra nos eixos. Dizem.

Eu acredito.

Se tem uma coisa que eu já aprendi nessa história de ser mãe é que o tempo é implacável. O enjoo matinal do início da gravidez - passa. A dor nas costas do sétimo mês também passa. E lá no fundinho fica a saudade do neném fazendo festa dentro de você.

As contrações. Passam.
O sangramento "eterno" de 20 dias no pós-parto - passa.
As hemorroidas ((sim, você leu bem: HEMORROIDAS. elas surgem com a prisão de ventre da gravidez. e sabe o empuxo no parto natural? aham! hemorroidas!)), elas também passam. Assim como o medo que dá de fazer cocô logo depois de parir.


Tudo isso passa. E lá no fundinho (sem trocadilhos com as hemorroidas, por favor!) fica a lembrança boa de ver os olhinhos do seu filho pela primeira vez.

As cólicas "intermináveis" do neném com intestino imaturo. Passam.

A dor da amamentação que te faz chorar sangue e pensar que vai perder o mamilo. Passa também.

E lá no fundinho fica a saudadezinha daquele bebê de dedinhos enrugadinhos que cabia inteirinho no seu colo.

A privação de sono. Passa - leeeentamente, mas passa.

Bom. Disso eu não tenho saudade não. Até porque ainda acordamos de madrugada por aqui.

São fases. Com início, meio e fim. 

Essa primeira separação é mais uma delas. Primeira porque devem vir outras.

O que significa que: sobreviveremos!

Melhor aproveitar enquanto ele ainda me quer por perto. :)