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quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Envolvimento ubuntu

Tem dias que a gente acha que está fazendo tudo errado.

Trabalha tempo de mais, brinca com a cria tempo de menos.

É banho, é fralda, é almoço, é ninar, é banho, é fralda...

É cansaço!

“Será que ele gosta de mim?” – vocês nunca se perguntaram?

Tem dias que a gente se acha incapaz de conciliar tudo.

É trabalho, é supermercado, é texto pra ler, é  faculdade, é supermercado de novo... um trabalho invisível sem fim.

“Será que vou voltar a ter tempo pra mim” – vocês nunca se perguntaram?

Tem dias que a gente só quer que o dia chegue ao fim.

E sempre chega. E nasce outro. Com novas possibilidades.

As obrigações vão ser as mesmas. Talvez apareça uma mão estendida para dar uma força, uma mensagem ao longo dia que te faça dar risada... coisas que tornam a jornada mais leve. Mas, a roupa suja vai continuar lá se você não lavar. E o leite sempre acaba. Tem que ir comprar mais. Não dá pra fugir da realidade.

E tudo bem ficar cansada. É bem cansativo mesmo! E a gente nem pode deitar em posição fetal e chorar até pegar no sono... não dá tempo!

Na correria do dia a dia não tem essa de “acione sua rede de apoio e tire um tempo pra você”. Até isso precisa ser pensado e organizado.

Pensar e organizar são coisas que, no meio da crise, eu não consigo fazer.

Por isso, na onda das resoluções de fim de ano, decidi que para 2021 preciso pensar e me organizar.

Não é justo comigo nem com MM passar por tantas crises de ira, desencadeadas por exaustão.

Decidi que vou sentar e pensar: quem, de fato está disposto a ajudar? Como posso me organizar com elas?

A gente precisa aprender a pedir ajuda.

Por exemplo, avós normalmente ficam muitos felizes em ser avós – é preciso deixá-los ser! Isso vale para tias, madrinhas, amigas do peito irmãs camaradas. Quem quer de fato participar da sua vida e da sua cria? Com todas as responsabilidades que isso envolve?

São essas pessoas que precisam ser envolvidas. É a elas que você precisa pedir ajuda, antes de surtar – de preferência.

E se você está por perto de uma mãe sobrecarregada e realmente tem disposição em ajudar, demonstre! Falar “qualquer coisa pode me ligar” é muito gentil, mas na prática não tem nenhuma aplicabilidade.

Manda um lanche. Umas frutas e verduras frescas. Se vocês estão convivendo nessa pandemia, libera a mãe por duas horas, de forma aleatória mesmo e de surpresa - pra ela nem saber o que fazer com “tanto tempo livre”.

Dê afeto. Sim, para a criança. Mas, a mãe precisa muito também.

Ubuntu é mais que uma hashtag da moda. Ubuntu é rede. É coletivo. É interdependência.

Para 2021 vou sentar, pensar, organizar e manter por perto apenas quem tope o que chamo de "nível ubuntu de envolvimento".

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

É preciso sentir!

 

Enquanto ancestral de quem tá por vir, eu vou

Esse verso do Emicida eu ouço desde o ano passado, quando escutei “Principia” pela primeira vez. Mas, foi ontem que ele ecoou profundamente em mim. Caiu a ficha de que MM me fez uma ancestral em vida. E isso é muito forte!

A ancestralidade não descansa. E a filosofia ubuntu traduz isso: “eu sou, porque nós somos”.

Somos!

Eu carrego comigo a força, a coragem, a resistência de toda a minha ancestralidade. E estou aqui para honrar tudo isso. A vitória não é minha, é nossa. Os problemas não são meus, são nossos.

E isso se reflete para além da vivência espiritual (tão menosprezada em nome do sistema de dominação ocidental). Isso é a vida em comunidade em África. A professora Sobonfu Somé tem um relato belíssimo de como os povos de Burkina Faso vivenciam o ubuntu.

“Todas as mães são mães de todos”.

Não existe problema pessoal, a comunidade se organiza para que todos consigam estar em harmonia. Todos são responsáveis por todos. Entre mães, que é o que mais me interessa aqui, os filhos são de todas.

Todas por uma. Uma por todas.

Já pensou que louco?

O princípio da coletividade é tão vívido que o entendimento é de que quando uma doença chega é para apontar que algo na comunidade não funciona bem.

Oi, coronavírus.

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Invoco o ubuntu para defender cada vez mais o aquilombamento da mães pretas, e das mães de crianças pretas. Cuidemos de cada uma delas como se fossem nossas – são nossas!

É por isso que doem aqui as mortes de nossas crianças baleadas a esmo numa terra sem lei. Não são apenas doze mães que perderam seus filhos pro genocídio nas favelas do Rio de Janeiro este ano. Todas nós perdemos essas crianças.

Esse sistema, vendido como civilizado, pautado na lógica iluminista da razão como única forma de existência, é o sistema que não vê problema em deixar o filho da empregada sozinho no elevador, para se perder e cair do 9º andar.

Foi essa lógica existencialista do “penso, logo existo” que desqualificou a filosofia kemética do “sinto, logo coexisto”.

Sentir! É preciso sentir!

Um esforço coletivo, de partilha, de cuidado, de interdependência. Faz bem para saúde mental das mães, protege as crianças, constrói uma sociedade. E não seres humanos insulados.

Para nós, mulheres pretas, isso é basilar. Isso é o que de fato somos. Aquilombemo-nos!

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

A culpa que inventaram pra mãe

 Na semana passada eu consegui sair pra correr todos os dias. A rede de apoio segurou a onda com MM enquanto eu tentava alinhar os pensamentos (e, de quebra, queimar calorias) correndo. 

Correr é uma das minhas válvulas de escape. E eu estava sem essa atividade desde a descoberta da gestação. Então, voltar a correr foi tipo um reencontro comigo mesma. 


“Olá, Carol de dois anos atrás! Seu condicionamento mudou, hein?! Bom, MUITA coisa mudou! Mas, que bom que você voltou!”

Estou correndo metade do que corria antes de atravessar o portal da maternidade. E já me faz muito bem! Correr é o meu remédio.

Há alguns meses venho observando os ciclos pelos quais eu e meu organismo passamos.

Sim, mulheres! Não somos estáveis, nosso aparelho reprodutor (pra citar um exemplo) funciona em ciclos e é muito importante conhecermos esse caminho. 

A sociedade ocidental, fundamentada no patriarcado, superestimou a estabilidade, nos classificou de histéricas, queimou “bruxas” e, até hoje, desqualifica nossa fala baseada nesses argumentos. O famoso “está naqueles dias”.

Sim, há semanas que estou mais sensível, mais à flor da pele, mais introspectiva – o que é ótimo para exercícios de acolhimento e de empatia. Em outras semanas, estou mais produtiva, mais resiliente, “sangue no olho”... é quando os desafios, por maiores que sejam, só servem pra me animar. Entendi que é uma ótima semana para iniciar projetos, por exemplo.

E há os dias em que o pavio está mais curto, a irritabilidade é mais presente e o exercício necessário é o da paciência. 

Nenhuma dessas fases me define. Todas elas me compõem.

Eu mapeei meu ciclo e o desafio era encontrar algo que me ajudasse no período que considero mais denso, o da irritação.

Achei: a corrida!

Correndo todos os dias, essa fase passou quase despercebida. A endorfina liberada é uma ótima aliada, no meu caso.

Ela só não funciona pra culpa.

Correr me faz muito bem. E é importante estar bem - porque eu mereço e porque, assim consigo ser minha melhor versão, inclusive como mãe. Mas, essa chatíssima culpa fica aqui apontando o dedo na minha cara, me julgando pelos 50 minutos diários que tirei pra mim, sem MM. 

Conclusão: esse modelo ocidental desenhando pra aprisionar as mulheres é de fato muito eficiente. Individualiza as responsabilidades, mata o senso de rede, de coletividade, de interdependência. O oposto do que vemos nas culturas matriarcais de África... 

“É preciso morrer pro Ocidente”. A conclusão é do filósofo Molefi Kete Asante, e ressoa por aqui. Assunto pro próximo post...