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domingo, 17 de maio de 2020

Continue a nadar


60 dias de isolamento.

Um carrossel de emoções: incerteza, com esperança, com desespero, com exaustão, com álcool 70%, com máscara, com óculos embaçado, com coração despedaçado.

Com escritório dentro de casa, com casa com vazamento, com busca por apartamento, com mudança do lado fora – e uma enorme do lado de dentro.

Em meio a todo o caos, uma pausa forçada.

Uma queda, um corte, muito sangue, pronto socorro. Três pontos na testa.

MM ganhou sua primeira cicatriz. Numa sexta-feira à tarde, no meio de uma brincadeira. 

Quando se trabalha em casa com um bebê de 1 ano é simplesmente IMPOSSÍVEL dar conta de tudo sozinha. Principalmente se o seu escritório precisa simular um estúdio de rádio – não dá pra fazer participações ao vivo na programação com um bebê no colo. Acredite. Eu tentei.

Meus mamilos sangrando foram testemunhas de todas as estratégias que eu experimentei.
Simplesmente não dá. Eu preciso de ajuda.

E, tinha alguém me ajudando enquanto eu trabalhava. Mas, aquele choro desligou qualquer outro som ao redor. O choro, para uma mãe, denuncia: deu ruim!

A cena assusta. Eu não sabia que tinha TANTO sangue na testa. E tão pouco correndo nas minhas veias ao ver meu MM todo ensanguentado.

Mas, ele não precisa de uma mãe desesperada - pensei em meio à vertigem.

Para. Respira. E faz o que tem que ser feito.

Gelo. Colo. Fralda.
Mais gelo. Mais fralda. Mais colo.

O choro cessou. O gelo virou brincadeira. O sangue estancou.
E é como se nada tivesse acontecido.

Quer correr. Quer pular. Quer seguir descobrindo o mundo.

Nova pausa dramática. Primeira ida ao hospital. Anestesia. Choro. Costura a testa. Mais sangue.

Acabou. Um abraço e o mundo volta ao normal (o dele – no meu, as pernas ainda tremem).

MM nem lembra que tem testa. Não se lamenta. Não pensa na cicatriz. Não perde tempo pensando como poderia ter evitado. Não deixa de aproveitar cada minuto para abrir gavetas, correr com a bola na mão, aprender novas palavras, brincar com a Maya.

MM me deu uma grande lição.

Quando é que a gente perde essa capacidade de resiliência? Onde deixamos esse poder de adaptação? Que caminho é esse que nos leva a sempre estar preso ao que poderia ter sido ou ao que será lá na frente, e perder toda a diversão do presente? 

Mesmo com pontos na testa, é possível. Mesmo com o coração aos pedaços, dá pra seguir. Mesmo com máscara e distanciamento social, dá pra ser!

Levanta, seca a lágrima, estanca o sangue, pede um abraço (virtual, por hora) e segue!

Já dizia Dory: continue a nadar!

segunda-feira, 4 de maio de 2020

A última vez

Quantas coisas você fez pela última vez hoje?

Será que dá pra saber?

Há sete meses eu vi minha avó pela última vez. Mas, eu não sabia.

Abracei, beijei, pedi a benção. Pela última vez. Sem ter a menor ideia.

Se eu soubesse, faria diferente? Abraçaria mais demorado? Ficaria mais tempo sentido o cheirinho dela?

Talvez.

Mas, eu não sabia. Apesar de ser uma possibilidade real, a gente nunca admite e faz os cálculos, e toca a vida, sem contar com isso.


***

Mês passado uma frase de Cesare Pavese apareceu para mim duas vezes na mesma semana, num filme e num livro:

::Não nos lembramos de dias, lembramo-nos de momentos::



Sinto-me muito contemplada, Pavese. Entendo perfeitamente o que você quis dizer.

A correria, as obrigações, o lixo acumulado que precisamos levar pra fora, o discurso do presidente que desequilibra mentalmente... toda essa poluição diária faz a gente perder os momentos. 

A gente passa por eles e nem se dá conta que podem ser pela última vez. Que aquele pequeno instante vai ser a lembrança boa, vai fazer a gente fechar os olhos de alegria ao relembrar.

Tem os momentos épicos, que a gente vive e sabe que são épicos. Tipo, um banho de cachoeira depois de uma hora de trilha pesada. Ou, o gole de cerveja quando acaba o jogo e seu time ganha o campeonato.

(saudades dessas duas coisas! que momentos!)

E tem momentos cotidianos que parecem rasos, mas que fazem a gente sorrir sozinho quando lembra. Tipo, seu cachorro filhotinho tentando subir o degrau da garagem e dando cambalhota quando cai por ser pequeninho demais. Ou, o olhar de um bebê que, depois de fazer um esforço enorme, consegue rolar pela primeira vez.


Dura cinco segundos. Mas, fica para sempre.

As 'últimas vezes' acontecem todo dia. A morte torna isso palpável. E, em tempos de pandemia e confinamento, essa ideia ronda a cabeça da gente de forma mais constante. Mas, a última vez não depende dela.

Antes de aprender - ou descobrir que podia - se levantar sozinho, Murilo andava a casa todo arrastando o bumbum no chão. Foi uma semana assim. Até que uma manhã, foi a última vez. Tentou uma, duas, três: levantou! Sem apoio nem ajuda. E nunca mais precisou se arrastar.

(e nunca mais ficou parado no mesmo lugar por mais de dois minutos)

Qual foi a última vez que você brincou de pique-esconde com seus primos?

Um dia a brincadeira acabou, vocês foram tomar um refrigerante e nunca mais brincaram de novo. Foi a última vez. E ninguém sabia.


Qual foi a última vez que você dormiu no colo da sua mãe?
Um dia ele te ninou, te colocou na cama, e dali em diante você passou a adormecer sozinho. Foi a última vez. Ela não sabia. Nem você.

O último beijo de um casal que se separa. Alguém sabia?

A última vez que você se aglomerou, quando foi?

(não vale se você é a Gabriela Pugliesi ou frenquenta manifestação com pauta antidemocrática)

A última vez que você apertou o botão do elevador sem medo do corona?

Ninguém sabia que era a última.

Agora, não dá também pra saber quando vai ser a próxima.

O que nos resta é o que realmente importa: o momento presente.

Os dias difíceis (os fáceis também) caem no esquecimento, viram um amontoado que a gente deleta porque não consegue achar nada nesses arquivos.

Já os momentos bons ficam com a gente. E podem ser usados para dar leveza, se o dia estiver sendo difícil.