Páginas

sábado, 9 de novembro de 2019

Espelho estranho

Sempre que eu me olho no espelho enquanto estou tirando leite no baheiro da firma, levo um susto: quem é esse pessoa refletida ali? Quem é essa mulher? Como ela está diferente do que eu era acostumada a ver... parece uma desconhecida.

Todo dia a mesma coisa. Ordenhar está na lista das "novas atividades cotidianas" desde que eu voltei a trabalhar.


pausa para manifestar a minha estranheza com esse verbo, "ordenhar". acho tão animalesco. mas, amamentar é isso mesmo. animalesco no sentido inclusive dos instintos. aliás, tem muita coisa de animalesca nesse coisa de gestar/parir/alimentar...

Ordenhar. Todo dia tenho que ordenhar porque o peito enche de leite e não tem neném por perto. Aí, você garante o leitinho da criança do dia seguinte, para o momento em que ele perceber que você não está por perto.

O peito cheio de leite mexe mais com o psicológico do que com o físico. Pelo menos pra mim tem sido assim. Quando passa muito tempo, ele começa a empedrar. E dói. Bom, não chega a ser uma dor, mas é desconfortável.

A dor no peito existe, mas é aquela do sentido figurado. Dor de aperto. De angústia. De culpa.

E aí, em meio a essas dores, com a bomba de leite num peito e o outro vazando, a imagem refletida no espelho parece não fazer nenhum sentido. É como se uma outra pessoa tivesse ocupado o meu lugar e eu, assistindo de fora.

Não sei se é porque eu me olho muito menos no espelho agora. Ou porque mudei tanto que nem me reconheço. Ou as duas coisas.

O corpo, cedo ou tarde (ou muito tarde, respeitemos nosso tempo) vai voltando pro lugar. A gestação deixa marcas de recordação, pra te lembrar que um bebê se formou, cresceu e morou ali dentro. 

Um dia você se despede do barrigão da gravidez, depois do inchaço do pós-parto. Um dia seu cabelo para de cair e novos começam a nascer naquelas entradas enormes que surgiram na testa. Durante esse processo tudo parece ser eterno. E você acha que vai ficar assim pra sempre: de moletom e careca. Mas, os meses passam, você se olha e leva um susto quando percebe que  


"uai, parece que está voltando ao normal"
((menos as olheiras, essas aí ainda me acompanham. são fiéis))

Agora, a mudança interna... essa aí te desconfigura inteira. E na essência. Não é uma baguncinha ali de roupas jogadas em cima da cama não. É um tsunami que tira alfinetes e tijolos do lugar. Uma bagunça profunda. Uma bagunça raiz.

E aí, pra se encontrar no meio dessa confusão é complicado. 


Muito mais do que voltar a caber naquele jeans pré-gravidez

Acho que vem daí a estranheza no reflexo do espelho. Muda tanto dentro que começa a refletir fora.

A tal da maturidade, ela também se apresenta. Sabe aquela história de "escolha suas batalhas"? Então... você começa a fazer isso sem nem perceber... é que não sobra tempo - literalmente

"Sem tempo, irmão" 

Pronto. O vidrinho de leite encheu - por hoje é isso. Guarda a bomba, fecha a blusa, finge que se reconhece e segue o baile. 

Antes de sair do banheiro, uma última olhada no espelho: "é... tá estranho, mas talvez seja bom. Vamos dar uma chance pra essa nova pessoa"





Nenhum comentário:

Postar um comentário